quarta-feira, 16 de junho de 2021

A Costa dos Múrmurios

 

Nesta obra a "voz e o olhar responsável pela narração do sucedido" pertence a Eva Lopo que ao longo da narrativa vai desenvolver e até alterar parte do que é contado na primeira parte da obra. Digo "contado", porque se trata de um conto, uma narrativa curta com um título e a palavra fim no final. Este conto é como uma introdução ao que será desenvolvido mais tarde, quando Eva recorda o que se passou nessa altura.

O cenário da ação é Moçambique na cidade da Beira, pelos anos sessenta, realçando o hotel Stella Maris num complemento à presença das famílias dos oficiais, mulheres e filhos, que os tinham acompanhado na deslocação para Moçambique para a guerra, para serem um desdobramento da ideia de família que o regime queria manter e incentivava como apoio e defensora da moral. 

Os personagens principais são Eva e Helena. O marido de Eva o alferes Luís Alex e o capitão Jaime Forza Leal e o jornalista Álvaro com quem Eva terá uma espécie de relacionamento. não são personagens principais no entanto é por conta delas que algumas das situações se desenrolam e servem para reforçar o inconformismo da personagem principal.

Eva Lopo mostra-se como uma mulher inconformada com a vida de esposa de oficial de guerra e questiona quantos a rodeiam sobre a necessidade de se fazer mais e melhor, mas não aquilo que se faz. Não se considera parte daquele mundo, mas em algumas situações conforma-se com ele; Helena é uma mulher que "aprendeu" pela força a ser submissa à vontade de um marido déspota e abusador; O capitão Jaime Forza Leal é o protótipo dos homens que naquela época eram os reis da casa e queriam ser os reis do mundo, à custa da individualidade e do respeito de todos os que o rodeavam; o alferes Luís Alex, embora fosse um homem da mesma época era mais contido nos seus desejos de mandar na mulher, respeitando-a, mas por vezes deixava transparecer o desejo de ser como o capitão a quem idolatrava.

A maior diferença entre as duas obras a apreço, além das famílias existentes n' A Costa dos Múrmurios e nunca em Os Cús de Judas prende-se com o facto de que António Lobo Antunes a anos e quilómetros da guerra nos transporta diretamente para o espaço de guerra, para os traumas e os dias dos soldados e de todos quantos estiveram envolvidos nela e, Lídia Jorge nos põe às portas da guerra, nos anos da guerra e mostra-nos, através de Eva, a vida dos que estavam fora do teatro de guerra, vivendo as suas próprias guerras, enqquanto esperavam os que iam à guerra.

Podemos ver uma semelhança entre as duas obras na espécie de diálogo existentes numa e noutra. Em Os Cús de Judas o narrador-personagem fala com alguém que sabemos que o ouve e que por vezes lhe responde (sabemos isto pelas próprias palavras dele) e em A Costa dos Múrmurios a narradora-personagem está a falar com alguém, que é o autor do conto da primeira parte da obra, desenvolvendo ou contrariando ideias antes expostas. Neste caso o diálogo faz-se a partir do conto como questões e da narrativa do romance como respostas.

Concluo com uma pequena análise ao título que nos diz que os vozes altas, que se deveriam fazer ouvir contra a guerra, contra as situações que se viviam, contra a estadias das famílias não eram mais do que múrmurios que mal se ouviam. Eram as queixas dos que viviam as situações, dos que as viam ser vividas por outros e era ao mesmo tempo os múrmurios dos que na pátria, não se revoltavam contra a guerra colonial e se calavam.

Nota: Fiz uma pequena comparação entre as duas obras porque as duas fizeram parte de um contexto que me obrigou a lê-las. Não são livros que volte a ler, mas foram uma mais valia para percebermos a literatura pós-guerra colonial.

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